Contos

Tatiana está sangrando

Era perto do meio-dia quando Tatiana saiu correndo da escola. Ela tinha ainda que almoçar antes de se encontrar com a Ju. Estava atrasada, e isso a fazia suar mais. Passou no meio dos meninos a tempo de escutar “A gorda tá com pressa?” Olhou para a frente e correu mais. Não dava tempo de chorar. “Corre mesmo, gorda, pra ver se perde meia tonelada”, ela ouviu antes de cruzar o portão e ganhar a calçada. Subiu no ônibus e procurou um assento no fundo da condução, onde ninguém a visse. Olhou pela janela e aí, sim, chorou um pouquinho. Decidiu não ir na Ju, depois ligaria para a amiga. Faria sozinha hoje.

Entrou em casa, gritou “Cheguei!” e foi direto para o banheiro. Trancou-se, pegou o estilete na mochila e começou. Doeu tanto, tanto, no corpo e no coração, mas vai cicatrizar. Tatiana sabe que todas as feridas cicatrizam mais cedo ou mais tarde. Fica a marca por um tempo, depois some — um fio de sangue que corre pelo joelho, uma trilha que nasce no ponto do corte e busca, pela gravidade, alcançar o chão. Uma gota maior e mais robusta dilata o fio vermelho e morre no meio da gaze que a mão aperta contra a pele, estancando a hemorragia. A água fria da torneira termina de limpar o resto, só permanece aquele tom avermelhado e difuso, a mancha que denuncia a mutilação, a identidade do flagelo imposto por ela própria.

Tatiana sabe que isso está errado, mas não consegue parar de errar. A mãe chama “Almoço pronto. Tá morta aí dentro?” Tatiana quis gritar “Tô”, mas só disse “Já vou”. Não queria ver ninguém naquele momento, não precisava de testemunhas na hora de lavar e expiar o que os outros consideravam pecado. Tampouco precisava que mais uma vez, outra vez, a julgassem e lhe apontassem com o dedo. Seca as pernas com papel higiênico e puxa a saia para baixo, escondendo os sinais.

Semana que vem, quando a marca de hoje já estiver velha, uma nova será feita, porque ela precisa de ajuda e, na hora da ajuda, ninguém aparece. Só aparece a Ju, tão gorda, tão vesga, tão infeliz como ela.


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Mário Baggio

Mário Baggio é jornalista e escritor. Nasceu em Ribeirão Claro-PR. Mora em São Paulo-SP desde os anos 70. Tem 6 livros de contos publicados: “A (extra)ordinária vida real” (2016), “A mãe e o filho da mãe (2017), “Espantos para uso diário” (2019), “Verás que tudo é mentira” (2020), “Antes de cair o pano” (2022) e “A vida é uma palavra muito curta” (2024). Publicou contos em várias revistas eletrônicas (Germina, Gueto, Ruído Manifesto, Subversa, entre outras). Escreve quinzenalmente no blog literário Crônica do Dia e no Crônicas Cariocas. Participou da “Antologia Ruínas” (2020), “Tanto mar entre nós: diásporas” (2021), “Brevemente Infinito” (2024) e Antologia de Contos da UBE-União Brasileira de Escritores (2021 e 2023).

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